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sábado, 19 de novembro de 2011

“FILME DE AUTOR”: O DIRETOR E A MONTAGEM

Contribuição enviada pelo amigo Raymundo Mendonça (cinematógrafo), que deve ser útil para os profissionais de cinema e vídeo como ponto de reflexão.

O primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, Barravento, poderia não ter sido concluído. Conforme suas próprias palavras, “ quando vi o material não gostei e deixei de lado. Oito meses mais tarde, Nelson Pereira dos Santos assistiu aos copiões e achou interessante”( 1 ).
Esta declaração me permite formular algumas “cogitações”, as quais não pretendo considerar como hipóteses, enquanto formulação cientifica:
- Será que Nelson, na época mais experiente, simplesmente teria identificado o caminho para formatar a finalização do filme que Glauber “visualizava” verbalmente, mas não o encontrava no material filmado?
- Será que Nelson, compreendendo profundamente e concordando com a essência das idéias que Glauber desejava transmitir, bem como com a forma inovadora através da qual pretendia expressa-las, o ajudou a “tirar o leite da pedra”?
- Será que o filme que veio a existir é a “visualização” de Glauber?
Bem, são algumas cogitações, dentre tantas outras possíveis. O que mais importa aqui é relembrar que a contribuição do montador de Barravento foi definitiva para o filme se concretizar. Muitos contemporâneos sabem que Glauber sempre disse isso.
No meu entender, o episódio Barravento estimula uma indagação: qual seria, então, a dimensão, a relevância, da montagem em um filme de um cineasta visceralmente “autoral”?
Conforme Pudovkin, no seu livro Argumento e Montagem no Cinema, a montagem ¨define-se como operação técnico-artística que consiste em criar ritmo e despertar emoção por meio da combinação estudada de trechos de filmes de conteúdo e extensão diversos¨ ( 2 ). Temos, assim, que a montagem não é o simples encadeamento de cenas filmadas. Na concepção de Eisenstein, a montagem é a criação de conflito, de oposição dialética, de choque sensível entre uma imagem e a seguinte.
Em Fronteiras do Cinema ( 3 ), o crítico e historiador Walter da Silveira se refere a um outro historiador e estudioso, Georges Sadoul, o qual, ao comentar o filme dos irmãos Lumière intitulado L’arrivée du Train, afirmou que suas mudanças de planos anunciavam a montagem e lhe abriam caminho: “contribuiam para dar ao espectador a impressão de que participava da ação, de que estava em meio à multidão, que ia se acotovelando pelos importunos ou atropelada pelo trem”.
Sendo a montagem uma das principais etapas na construção da obra cinematográfica, naturalmente deve ser conduzida por especialista nessa atividade específica. No âmbito cinema industrial, tal profissional chega a ficar mais vinculado ao produtor executivo do que ao diretor, sendo hoje muito comum que o diretor de produção contrate isoladamente o diretor e demais profissionais responsáveis por áreas fundamentais do filme (fotografia, cenografia, música. e montagem, por exemplo), fazendo ele a concatenação das colaborações, com foco às vezes meramente comercial.
Em um outro extremo, no caso do “filme de autor”, independentemente da fonte de recursos para a sua produção, é condição basilar o direito do diretor no sentido de escolher os profissionais e compor a equipe dos seus principais colaboradores e realizar a sua obra com plena liberdade.
Especificamente na etapa de montagem, quase sempre os diretores atuantes nessa linha de realização consideram que a sua presença, intervenção e mesmo domínio do processo durante a sua execução é fundamental. Seguramente, consideram a montagem como um componente relevante, dentre o conjunto de elementos ou fases que devem se articular na composição da obra cinematográfica obra cinematográfica - depois da direção, naturalmente. Mais ainda, quando argumento e roteiro são seus.
Partindo da premissa de que um montador/editor qualificado vai sempre acrescentar sensibilidade e competência técnica no processo de conclusão/finalização da obra cinematográfica, tenho uma visão mais flexível quanto a necessidade imperiosa de um minucioso acompanhamento direto de tal processo por parte do diretor, mesmo no caso do filme autoral.
Durante a feitura da obra, a montagem é a última oportunidade para o exercício de uma visão crítica - ou seja, menos envolvida emocionalmente – de que o diretor dispõe daí para frente. Eventualmente, pode apontar alguma necessidade ou deficiência oriunda do roteiro, ou da filmagem, re-ordenamento de seqüências...enfim, pode transformar, ou gerar uma obra que não seja exatamente aquela inicialmente imaginada.
Esta também é a ótica do consagrado montador/editor Walter Murch, detentor de dois “Oscar” ( Apocalipse Now e O Paciente Inglês ), que no decorrer de Num Piscar de Olhos ( 4) , bem demonstra como a contribuição desse profissional deve se dar através de um posicionamento criador e não subserviente, que reflita a sua compreensão e integração com o conjunto da obra, respeitando, inclusive, as múltiplas contribuições até ali já incorporadas.
Muito especialmente ao diretor que pretende construir uma obra cinematográfica mais personalizada, de caráter autoral, lhe cabe o dever de disponibilizar para o montador/editor, ao menos três componentes, que considero insumos fundamentais para a eficaz execução da etapa final de construção do filme:
1) entregar material filmado/gravado em quantidade suficiente e em adequadas condições técnicas e artísticas;
2) transmitir com clareza a sua visão/intencionalidade da obra cinematográfica; e,
3) oferecer/sugerir/negociar diretrizes para a realização dessa etapa do trabalho.
Ao cumprir tais requisitos básicos, o cineasta-autor estará assegurando que a ¨sua¨ obra expresse as mensagens/ sentimentos/convicções e/ou posicionamentos que pretende comunicar. Nessa ótica – e desde que o trabalho a ser desenvolvido seja confiado à responsabilidade de profissional/parceiro competente - não é condição necessária a presença física do diretor na sala de montagem/edição, para a conclusão de um filme no qual se pretenda destacar o caráter autoral.
Finalmente, cabe ressaltar que a compreensão até aqui apresentada deve merecer maior ponderação quando se trata de produção de baixo orçamento (situação muito presente no nosso país), com limitações de recursos para deslocamentos, estadias, etc., envolvendo ainda compromissos rigorosos quanto ao cumprimento de prazos contratuais, a serem cumpridos pelo(s) produtor(es) junto ao(s) financiador(es).
Nelson e Glauber montaram Barravento juntos. Mas, “tenho certeza” de que, se, por uma circunstância qualquer, o primeiro tivesse tocado a montagem sozinho, Glauber teria ficado satisfeito. E continuaríamos tendo um Filme de Autor.
São cogitações. Seguramente é possível um estudo mais amplo, devidamente sistematizado. De toda maneira, Nelson está por aí...

Raymundo Mendonça*
*Assistente de Direção , de Montagem e Montador, junto a Roberto Pires , Oscar Santana, Olney São Paulo e Sebastião de França.
Roteirista, Diretor, Montador e/ ou Diretor de Edição de Vídeos para Treinamento e Documentários Institucionais.

Referências Bibliográficas:
Extrato de entrevista coletiva publicada originalmente na revista Positif n. 61/janeiro de 1968/pg.19. Traduzida e publicada no Brasil em edição da Sociedade dos Amigos da Cinemateca (SP), livreto intitulado Glauber Fala à Europa, s.d .
Apud in: de CERQUEIRA, Dorine Dayse - Neo-Realismo – a montagem cinematográfica no romance. Associação Fluminense de Educação, Rio de Janeiro, 1980.
da SILVEIRA, Walter – Fronteiras do Cinema. Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1966, p. 68.
(4) MURCH, Walter – Num Piscar de Olhos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2004.

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